Capítulo 10- As primeiras palavras

Jake resolveu então dormir. No dia seguinte, pegou as peças de fibra de carbono feitas na impressora e mergulhou-as em uma solução protetora contra riscos. Depois, pintou as peças uniformemente e deixou secar à sombra. Também fez os últimos ajustes nas placas de circuito e cobriu todas com uma fina camada de verniz protetor. Pegou o torno e fez uma estrutura metálica oca onde colocaria a central, agora apoiada por molas, já que a espuma acumularia água e sujeira, diminuindo a vida útil dos componentes. Depois de algumas horas, procedeu a montagem das placas na central e desta na armação metálica. Uma placa fotovoltaica flexível foi colada numa parte inclinada 45° na estrutura metálica para obter melhor insolação, e os fios foram disfarçados por um acabamento de adesivo metálico. A cinta de velcro reforçado foi aparafusada nos dois lados da caixa metálica que suportava a central e era totalmente ajustável ao diâmetro do pescoço do Dragão sem causar aperto ou folga excessiva.
-Bem, agora é a hora da verdade!
Jake colocou o aparato no pescoço do Dragão e fez alguns ajustes:
-Vou deixar o tom de voz mais grave em uma intensidade sonora intermediária.
O ajuste foi perfeito e o apetrecho valorizou o visual. A caixa metálica ficou um pouco exagerada, mas era bem discreta perto da vistosa e grande pedra cor de safira que o Dragão já carregava originalmente.
-Para que isso Jake?
As primeiras palavras traduzidas fizeram Jake dar um pulo equivalente a quase metade da sua altura. Tinha conseguido vencer as complexidades e criado um invento inovador que possivelmente seria um dos destaques do Seminário de Ciências e Física. Em um ato repentino, Jake deu um beijo na testa do Dragão:
-Quem bom que agora você fala! Isso é um meio para a gente se entender.
-Esplêndido! Mas quero um nome. Ficar me chamando só de Dragão...
-Acho que o chamarei de Arkani, o que seria uma justa homenagem a um velho amigo.
-Estou grato e aceito mesmo assim. Um dia voarei para o norte e conhecerei o Arkani verdadeiro, você poderia ir junto comigo.
-Seria uma honra acompanhar você, mas tenho compromissos nesse mundo.
-Entendi. Você tem que me apresentar para um monte de pessoas e colocar minha vida em risco?
-Jamais! Daria tudo por você!
-Eu também gosto de você Jake. Mas aquela sua acompanhante me decepcionou ao querer me trocar por esses papéis verdes que você chamam de dinheiro. Por que precisam tanto dele?
-Trocamos ele por alguma coisa. Ele tem valor de troca. Não se preocupe, Ana é assim mesmo, mas sabe quando chega ao limite. Ela se preocupou muito com você.
-Eu preferia dividir meio a meio. Acho mais justo.
-Você tem ideias muito avançadas Arkani. Mas nós humanos somos seres perversos e cobiçadores, sempre queremos levar alguma vantagem sobre nossos semelhantes. Infelizmente dominamos o mundo...
-Nem tudo está perdido Jake. Te vejo como um fio de esperança para mudar a consciência dessas pessoas.
-Muito difícil. São bilhões! Para você ter uma ideia, todas as pessoas que existem não caberiam no seu vale nem se fossem empilhadas.
-São muitos então! Sempre vi muito poucos por lá, por que isso?
-Nós temos medo de você. Achamos que é mal-intencionado, matador. No passado travamos uma batalha e vencemos. Vocês quase sumiram e os chamamos de filhos do diabo. O diabo é o ser mais perverso do universo e corresponde a parte ruim. Nós confiamos em uma entidade chamada Deus, um ser realmente puro e que representa a paz eterna. Você é um grande inimigo para a maioria das pessoas, e eu, acompanhado de muitas pessoas, o vemos como um amigo.
-Não tenho palavras para agradecer o seu esforço. Estou tão feliz por reencontrar a satisfação de ter amigos... É tão bom!
-Acho você uma criatura muito linda. Forte e bem-feita, um primor da engenharia da natureza!
-Obrigado, estou honrado pelos elogios!
-Antes de tudo, esta coisa que eu coloquei no seu pescoço não está atrapalhando?
-Não consigo nem notar que há algo pendurado ali. Estou tão acostumado com minha safira quem nem presto atenção. Por mim não há nenhum problema, só não se agarre aos meus cabelos da próxima vez que voarmos, puxá-los dói um pouco.
-Desculpe se o machuquei no passado! Eu tenho uma dúvida que só você poderá me responder: Para que serve essa Safira que você carrega?
-Ela é muito importante para nós Dragões. Representa o nosso espírito e contém nossa essência cármica, não podendo ser removida porque se funde ao nosso corpo. É uma parte vital, se for retirada morremos porque perdemos nossa alma. Aos poucos somos tomados pela fúria e acabamos nos matando logo depois. Mas é porque deixamos o nosso corpo e ele assume características ruins de nossos instintos naturais.
-Vou abrir uma exceção para você, porque nós cientistas trabalhamos apenas com aquilo que podemos provar que existe. Acredito que temos uma essência porque penso diferente. Ninguém pode ver isso até hoje e tirar fotografias para provar que existe.
-Eu aceito e compreendo sua posição. Apenas quero dizer que isso é muito perigoso para nós e para todos à nossa volta. Temos um ótimo relacionamento com os outros, até chegar alguém para nos agredir em busca de fama. Sem ter um espírito nossa parte física torna-se nociva e não podemos fazer nada a não ser esperar que o corpo físico morra o mais rápido possível para não destruir o que estiver por perto.
-Acho que isso explica toda a história! Deixe-me raciocinar. Vocês estavam convivendo em paz, então aparecia alguém e retirava a pedra dos colares. Seus espíritos eram desencarnados e seus corpos começavam a andar sem controle, destruindo tudo o que estivesse pelo caminho. A mesma pessoa que começou tudo aparecia depois com uma espada, matava os corpos físicos e espalhava para os quatro ventos que vocês eram ruins e que deveriam ser mortos, o que acontecia na maioria das vezes.
-Infelizmente foi assim. Alguns de nós fomos capturados e torturados até a morte. Tivemos nossas pedras quebradas, por consequência todo o conteúdo espiritual delas desaparecia sem deixar vestígios. Aparentemente gostavam de ver o nosso sofrimento e nossos gritos desesperados. Nós nunca odiamos o homem, queríamos uma parceria pacífica, e se isso tivesse acontecido, teríamos educado ele e evitado todas as tragédias, inclusive de causas naturais, pois podemos conversar com os elementais, e eles tem informações que sua ciência jamais vai conseguir. Em resumo, podemos salvar muitas vidas com o nosso conhecimento, que vem se acumulando e sendo melhorado há muitas eras.
Após analisar a safira de Arkani de perto, Jake segurou-o pela cabeça. Arkani havia deixado escapar algumas lágrimas por se lembra de seu passado trágico, o que fez Jake supor que ele já tinha muitos anos de estrada:
-Vocês são meus heróis, mesmo com toda a perversidade do homem conseguem ter compreensão! Meus pêsames para o que aconteceu no passado, hoje estamos um pouco mais compreensivos, mais muito longe da boa convivência com o resto dos animais do planeta.
-Um dia eu lhe mostrarei meu mundo Jake. Ao ver o seu bom espírito me senti atraído por você, e tracei que quando terminar nossa jornada neste lado vamos nos encontrar e conviver em paz no outro....
-Eu estou profundamente grato com isso.
-Eu também, Jake! Um dia os meus amigos voltarão a sorrir e a caminhar pelo mundo sem precisar se camuflar e tudo voltará a ser como antes. Você está dando o primeiro e importante passo nessa direção, e eu lhe desejo todo o sucesso.
As palavras de Arkani selaram de vez que ele e Jake jamais se distanciariam mesmo após eras. Arkani também teve a proatividade que faltou aos outros Dragões e que levou sua raça à prematura extinção, talvez uma das mais avassaladoras já feitas pelo homem.
Enquanto Jake passava um momento surreal de total deslumbre em casa, Ana estava no outro extremo, irritada mas tentando seguir os conselhos de Jake. Haviam uma tonelada de ofícios que ela precisaria encaminhar até o fim do dia, algo possível em termos humanos, mas que exigiria um empenho considerável e extrema rapidez e paciência. Vários fatores contribuíam para a atividade ser estressante, desde o lento sistema informatizado até a pequenas perturbações de tensão na rede elétrica que faziam o computador reiniciar:
-Só que falta acabar a energia elétrica!
Ana começou a digitar em uma velocidade inacreditável e encaminhava vários papéis de forma simultânea, o que chegou a comprometer a estabilidade da rede de computadores do fórum. Após cerca de cinco horas de trabalho mais do que intenso, Ana consegui encaminhar o surpreendente volume e esperava algum elogio, mas o seu superior deu de ombros e disse que havia apenas cumprido a obrigação!
Estressada e muito cansada, Ana voltou lentamente com o veículo temendo um acidente. A demora levantou preocupação por parte de Jake:
-Arkani, ela não costuma demorar tanto, mesmo em dias de pico de movimento. Acha que ela está bem?
-Jake, eu estou sentindo más vibrações vindas dela. Acho que alguma coisa a perturbou muito, eu posso sentir!
-Acho que ela se estressou de novo no trabalho. Acho que está chegando, eu já volto!
-Não se preocupe Jake. Preciso comer.
Ana havia chegado e guardado o carro. Aparentava exaustão profunda e estava com as mão avermelhadas:
-Ana o que houve!
-Jake! Que alívio encontrar você! Estou tão deprimida, meu chefe me deu uma dura hoje! Me levou a exaustão, tive que encaminhar um monte de papéis que você não tem ideia!
A figura calma e bela de Jake era o melhor remédio para Ana naquele instante. Ela o abraçou fortemente, mostrando terrível desespero:
-Calma, amor! Agora está em casa. Vamos ver essa sua mão, acho que tenho alguma coisa para curar esses calos. Estão feios, você deve ter ficado muito tempo sentada e digitando rapidamente.
Jake recorreu a uma receita natural que poderia sanar o problema dos calos, já que os dedos ficaram muito machucados pelo contato direto e repetitivo com os plásticos do teclado do computador. Aliviada, Ana não poupou elogios:
-Além de belo, é inteligente. Esse é meu Jake!
Jake acenou positivamente com a cabeça e contou as novidades para Ana:
-Ana, sabia que agora o Dragão pode se comunicar normalmente? Eu consegui completar aquele apetrecho tradutor. Quer ver?
-Eu gostaria.
A primeira coisa que o olho de Ana viu foi a parte estética do aparelho:
-Deixou o Dragão mais bonito! Jake, nem acredito que foi você que desenhou isso!
-Bem.... eu posso dizer que o Dragão me ajudou um pouco.
-Obrigado pelo elogio Ana.
-Ele falou meu nome!
-Sim, acabei de descobrir que esse Dragão é um arquivo vivo. Ele conhece muito, e tem mais vivência que a gente.
Ana aproximava- se cada vez mais do Dragão, soltando vários elogios à sua aparência:
-Esse segundo colar ficou chiquérrimo! As Dracenas cairiam por você! Já era muito bonito sem ele. Sem contar essa safira, acho que foi a maior e mais bem trabalhada que eu já vi! Olha a perfeição dos contornos geométricos!
-Novamente, obrigado pelos elogios.
-Não há de quê!
-Ana, acho que você deve desculpas a ele. Essa é uma boa hora para fazer isso.
-Ah, claro Jake. Viu, desculpa o que eu disse no início. Eu estava errada e agora reconheci e estou consertando os erros.
-Não precisa se ajoelhar! Está desculpada.
-Como Dragão, você nunca teve uma parceira? Algo como eu e o Jake, sabe?
-Sim. Mas ela se foi antes mesmo que eu pudesse conhecê-la mais intimamente.
-Deve ter sido doloroso.
-Foi bastante. Mas aprendi a viver solitário.
-Porque você não gosta muito do sol?
-O sol irrita minha pele se eu ficar muito exposto. No meu tempo isso não acontecia.
-Ana, basicamente o que causa essa dor nele é porque na época o nível de raios ultravioleta era bem mais baixo. Hoje, com a camada de ozônio fragilizada pela poluição, incide muito mais radiação, o que causa as queimaduras.
-No Shopping tem promoção de bloqueador solar...
-Não sabemos os efeitos colaterais dos químicos do creme nele.
-Não enche Jake. Dá até para aplicar em pele de bebê.
-Podem haver reagentes químicos irritantes para pele de
Arkani. O protetor foi feito para pele humana ou animal, que tem composição diferente.
-Bem, sendo assim...
Agora que poderia enfim se comunicar, Arkani inverteu os papéis e começou a questionar Jake:
-Se não se importam, o que é Shopping?
-É um paraíso onde se encontra de tudo com muita classe e elegância...
-Não dê bola para Ana. Shopping é um lugar onde as pessoas vão trocar esses papéis por algo que elas querem. Quanto mais papéis desses ela tiver, mais coisas pode pegar. Só que lá elas tem que levar mais desses, porque as coisas são mais caras...
-Que ultrapassado Jake, eu tenho cartão de crédito!
-Algumas vezes acho que Ana gosta mais desses papéis do que de mim...
-Acho que entendi. Você entrega esses papéis para alguém e pode trocar por qualquer coisa?
-Sim, o que varia é quantos papeizinhos desses você tem que dar. Às vezes, com um dá para trocar por um monte de coisas. Outras vezes precisamos de muitos e muitos para comprar uma coisa só.
-Acho injusto trocar esses papeizinhos por coisas. Na minha época repartíamos por igual o que caçávamos e ninguém precisava oferecer nada em troca.
-Infelizmente hoje é assim Arkani. Os que tem muitos papeizinhos desses vivem bem. Os que tem poucos ou quase nenhum vivem com fome e até morrem. Essa folhinha chamada por nós de dinheiro trouxe imensas diferenças entre as pessoas, gerou muitas guerras e brigas.
-Foi ele que ocasionou a quase extinção da nossa raça?
-Em parte sim. Mas o que empurrou o homem contra você foi a sede de dominação e fama. No seu tempo quem matava Dragões era considerado um herói e recebia montanhas de uma coisa redonda e dourada que também dava para trocar por coisas. Eram as chamadas moedas de ouro, porque eram feitas totalmente de ouro. As pessoas importantes, ou seja, aquelas nas quais o povo confiava, começaram a espalhar que vocês eram demônios. Os demônios são seres terríveis...
Arkani deitou-se de lado, mas manteve a cabeça no mesmo lugar.
-Eu já conheci muitos homens ao correr do último milênio que tentaram me matar. Ninguém conseguiu porque eu me defendo bem. Provocavam-me dizendo para cuspir fogo, não conheço nenhuma criatura capaz disso.
-Isso foi uma armação para dizer que vocês eram demônios. Os demônios seriam seres vindos do fogo, então poderiam cuspi-lo.
-A única coisa que sei fazer é isso. Afaste-se.
Após Jake se afastar, Arkani gesticulou um esforço e dois grandes arcos luminosos subiram em direção as nuvens saindo dos seus dois chifres laterais. Um ruído elétrico crepitante foi ouvido.
Jake ficou com o rosto incrédulo. Ana, idem.
-Incrível! O que é isso Arkani?
-Acho que é aquilo que vocês chamam de ataque.
-Não compreendo!